O arlequim

O arlequim

O arlequim é um conto sobre a montagem de um espetáculo de teatro, que retrata contratempos, conflitos e formas de contornar problemas. É um texto didático na área de Gestão de Projetos, pois figura a influência de fatores ambientais e a gestão de riscos.


Ouça a versão em áudio:

Narração: Enna Carvalho (ennacarvalho@gmail.com)
Duração: 15 minutos


O teatro fechou um novo contrato! Comemorações, parabenizações, premiações e coquetel, eis o início de uma bela parceria. Um nobre da corte solicitou à trupe que montasse um novo espetáculo que seria apresentado à Vossa Majestade. O espetáculo era simples, mas muitas moedas seriam pagas, pois o nobre tinha lucros nos entretenimentos do rei. Ele prometeu que a trupe ficaria muito rica e haveria muitos outros espetáculos se aquele agradasse. Como não era todo dia que o dinheiro batia à porta, a trupe aceitou, mas pediram algumas semanas para planejar tudo em detalhes.

Eles se reuniram e tomaram decisões para garantir o sucesso do espetáculo. Votaram e escolheram um diretor jovem e inovador, que faria a diferença. Cercaram-lhe de ferramentas e ofereceram tempo e dinheiro de sobra; o elenco seria exclusivo, além das equipes de vestuário e cenografia. O dono do teatro pessoalmente se ofereceu para resolver qualquer problema. Estava tudo acertado.

O diretor recolheu-se para elaborar o espetáculo, gastou dias e noites isolado planejando cada pequeno detalhe: qual seria o tema do espetáculo, qual seria a forma, o drama, o ápice; surpresas; como os atores interagiriam, quais seriam suas roupas, falas; quais seriam os cenários, quando haveria trocas ou interações dos atores etc. Mas ele não se ateve apenas a isso, ele era mais precavido que um idoso rabugento e descreveu cada etapa da construção do espetáculo, que recursos precisaria, como o dinheiro seria gasto, quando consideraria um ato finalizado e fez até uma lista de tudo que poderia dar errado.

Figura de um arlequim

Passados alguns dias, o diretor decidiu procurar os principais da trupe para mostrar seus escritos e tudo que precisaria para montar o espetáculo. Acordou cedo, arrumou-se bem, tomou café e dirigiu-se ao teatro. Resolveu começar pelo proprietário e foi direto à sua sala, onde sua secretária lhe pediu que aguardasse. Enquanto aguardava, ele pensava em como ficaria bem na foto mostrando todo aquele planejamento, talvez terminasse a montagem antes do previsto, economizasse dinheiro e até conhecesse o próprio rei, por que não? Eram muitas possibilidades.

A porta se abre e aparece aquele senhor robusto, com cabelos grisalhos e óculos na ponta do nariz, que tranquilamente convida o rapaz para entrar, pede que sente-se, oferece um chá e diz em tom consultivo:

_ Sabe rapaz, estou aqui há muitos anos e posso dizer que já sei das coisas. Você é jovem e tem muita vontade, mas ouça meus conselhos. Você não deve trabalhar com os atores da nossa trupe, traga todos de fora. Separe seu grupo completamente do atual, não deixe que tenham interação. Contrate um cenógrafo e costureiras de outra cidade, faça tudo novo. Nossa trupe tem muitos problemas, é melhor não arriscar por isso.

_  Sim, senhor. Mas gostaría de lhe mostrar os planos que fiz e o que vou precisar…

Sendo interrompido pelo senhor já de pé, encaminhando-se para a porta e dizendo:

_ Se você precisar de alguma coisa pode me procurar diretamente, vá e faça as contratações.

Ele saiu da sala um pouco apreensivo, mas sua juventude lhe provia a confiança que só os poucos anos são capazes de prover.  Procurou um dos membros da trupe para que lhe ajudasse a contratar essas novas pessoas. Depois de uma breve conversa, partiu para continuar o desenho do espetáculo.

Bateu cabeça alguns dias montando o roteiro e resolveu que a cena principal se passaria na China. Precisaria de um cenário especial, com um dragão chinês e pelo menos 3 atores que falassem o idioma. Correu para sua equipe de apoio e passou estes novos elementos. Como era de se esperar, os comentários do proprietário do teatro haviam vazado e um certo ar de intriga tinha se instaurado. Dizia-se à boca pequena, que tudo aquilo era supérfluo, moderno demais e que seria um fiasco.

– O proprietário tinha razão – Pensou. Estes invejosos vão ficar pra trás e estão tentando dificultar meu trabalho…

O relógio continuou girando, como sempre fez. E já se montavam cenários no teatro, uma pequena reforma nas cadeiras também foi iniciada. Já se podia ver atores ensaiando, cenas de luta, morte, drama e amor. A peça estava ficando perfeita, tudo muito emocionante. Todos estavam felizes e empolgados em  participar de um espetáculo que seria apresentado para o rei.

No entanto, não haviam atores chineses na região, nem se encontrava alguém que pudesse lhes ensinar algumas frases – como ficaria a peça sem isso ? Toda veracidade da cena poderia ser comprometida! Havia também a possibilidade de algumas roupas não ficarem prontas, pois um material importado estava demorando a chegar. O diretor monitorava tudo. Pensou em caminhos alternativos e, como sabia que havia dinheiro de sobra, procurou o dono do teatro para enviar alguém em busca do material.

Chegou no escritório nervoso e apressado. Não conseguia falar claramente os acontecimentos, tentou explicar o possível problema, mas foi interrompido:

_ Estou muito ocupado agora, rapaz. Podemos conversar depois? Trabalhe com o que tem, aquelas moedas-extra já tomaram rumo.

Talvez ele não tenha sido suficientemente enfático e resolveu insistir. Voltou à sala do proprietário várias e várias vezes e ouviu muitas conversas sobre vinhos, viagens e moedas, mas não conseguia apresentar suas idéias. Dizem que uma xícara cheia não pode receber mais chá.

O diretor buscou soluções para alguns dos problemas, outros ele resolveu esperar para ver, sobretudo no concernente aos materiais do cenário, alguns vestuários e o professor de chinês que viria na última semana para ensinar as frases.

Apesar da passagem do tempo, alguns contratempos permaneciam pendentes, mas em sua maior parte, o espetáculo estava pronto. A reforma das cadeiras estava concluída, os cenários posicionados e atores já faziam ensaios gerais usando o vestuário. A grande noite se aproximava!

Na semana que antecedia o espetáculo, toda turma do coquetel apareceu novamente, fazendo muitas perguntas. O diretor respondia de forma confiante, mas logo perceberam que alguns elementos estavam faltando. Ouviram várias justificativas, mas faltando apenas uma semana, resolveram tomar uma decisão drástica: trocar o diretor. O rapaz olhou aflito para o dono do teatro, depois de todo aquele trabalho para construir as coisas do nada, mas sua resposta foi seca e dura:

_ Você não conseguiu gerenciar as coisas até aqui, rapaz. Faltou-lhe atitude, vou colocar outra pessoa e garantir o espetáculo.

Alguns ajustes foram feitos no roteiro, roupas e materiais foram simplificados e a fala em chinês foi substituída por um idioma inventado – afinal ninguém entenderia mesmo. As etapas de ensaio final, que trariam custos-extra, foram retiradas e finalmente tudo estava preparado para aquela noite.

O rapaz não conseguia entender o acontecido, já que havia tomado todas as precauções possíveis e tinha domínio total da obra. Talvez por sua juventude não entendesse o poder político que há em qualquer grupo social e como pessoas intencionadas podem deliberadamente influenciar uma decisão e subtrair as outras. Retirou-se frustrado.

Chegou a grande noite! A comitiva do rei enchia o teatro, não havia um assento vazio se quer. Gente de todos os tipos, convidados distantes e toda nobreza daquele lugar. Os líderes da trupe recebiam os convidados com toda simpatia, oferecendo bebidas e conversando alegremente. Nos bastidores havia muita ansiedade, os atores se maquiavam, vestiam e repassavam os textos pela última vez. O grupo de apoio revisava cenários, elementos de palco e tudo estava em ordem. De repente, ouve-se o som das trompetas, o rei chegou. A carruagem parou na frente do teatro iluminado e o rei desceu com sua esposa – a rainha- por um tapete vermelho. Era realmente um momento de glória para aquela trupe. O rei foi recebido pelo dono do teatro, que lhe encaminhou para o lugar de mais alta honra. Todos se prostraram e em seguida aplaudiram aquele grande momento.

Após alguns instantes, surgiu no centro do palco o novo diretor, vestindo fraque e dando as boas-vindas. Houve alguns shows preliminares para entreter os convidados enquanto os últimos ajustes eram realizados nos bastidores. A orquestra tocou uma melodia que começou suave e tornou-se pesada e sombria, preparando o público para o clima inicial da trama, e finalmente começou o espetáculo!

O primeiro ato falava sobre um homem velho, que havia viajado por terras distantes e não conseguia mais encontrar seu grande amor. Muita tensão na evolução dos personagens, conflitos, privações e o público começava a se emocionar. No ápice do espetáculo, a cena na China. Fogos, dragões, dançarinas e luzes de todas as cores enchiam os olhos, tambores tocavam alto e envolviam os espectadores. No ponto alto da cena, os atores discutiam em chinês – o idioma inventado –  até que um dragão feroz aparecia e lutava com eles. Espadas, catapultas e muito fogo por todos os lados, os guerreiros resistiam bravamente aos ataques daquele dragão, mas um a um estavam prestes a ser dizimados. Já não havia mais esperança para aquela vila, até que apareceu um anjo para lhes salvar – uma mocinha que descia do alto pendurada por um cabo – faz-se silêncio para a batalha épica, todos estavam apreensivos. Neste momento ouve-se um estrondo e o som de muitas vozes, a cadeira de um dos convidados havia quebrado – maldita reforma. Os lideres da trupe correram para ajudar, preocupados, a atenção se dispersava, mas o espetáculo precisava continuar. Os tambores abafaram o som dos comentários e as luzes levaram a atenção do público de volta ao palco, onde o dragão ferozmente lutava. Com toda aquela distração, a mocinha se desequilibrou e ficou de ponta-cabeça, um dos rapazes que manipulava o dragão se assustou e, ao tentar salvá-la, rasgou a fantasia e deixou expostos os demais atores. Foi um caos. Risos encheram a sala, a peça estava definitivamente arruinada.

Neste momento caótico, surgiu dos bastidores um arlequim. Naquela época os arlequins entretiam o público nos intervalos. Ele fazia mímicas e piruetas, mas também tirava sarro dos acontecimentos. Suas sátiras sobre a peça foram tão engraçadas que ao longe se ouvia a risada do rei. Todos aplaudiam o desfecho cômico. O diretor correu para tirá-lo do palco, já que aquilo não fazia parte do roteiro! Mas foi impedido pelos líderes da trupe, que perceberam a oportunidade. A piada mais engraçada foi sobre os falsos chineses, que inventaram o idioma. Dizia o arlequim que qualquer idiota sabia que o rei falava chinês. Foi realmente muito engraçado..

Ao final de toda aquela cena, as cortinas se fecharam. Os convidados saiam do teatro com comentários dos mais diversos, alguns adoraram o show, outros acharam de mau gosto. Mas o principal espectador –  o rei – gostou e mandou seu representante, aquele nobre do começo da história, solicitar uma nova peça, desde que ela começasse com o arlequim. Os líderes da trupe procuraram o intruso salvador da pátria, que já fugia pelo meio da multidão. Ao alcançá-lo, já com pouca maquiagem, notaram que se tratava daquele jovem diretor. Sim, aquele que fora retirado do espetáculo. Ele sabia que as coisas dariam errado naquela cena, afinal os materiais não estavam prontos, havia tentando avisar, mas como fora impedido pelo complô, resolveu vestir-se de arlequim e salvar sua obra-prima. Foi uma grande surpresa e uma grande lição para aquela trupe.

Quantas vezes precisamos nos vestir de arlequins para concluir nossos trabalhos com sucesso? Os fatores psico-sociais tem sempre muito mais influência sobre projetos do que técnicas, requisitos e ferramentas. Pense nisso.

Eli Rodrigues

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Publicado por: Eli Rodrigues

There are 2 comments for this article
  1. Giovani Faria at 09:17

    Oi Eli,

    Leitura extremamente agradável. Este seu veio artístico, eu não conhecia ainda.
    Envolver todos stakeholders (atores, plateia, …) é tarefa difícil e requer bastante esforço.
    Além disso, lidar com interesses e hierarquias também requer ‘prática e habilidade’, além de muita resiliência.
    Finalmente, o comprometimento do gerente do projeto ‘Arlequim’ é de se destacar. Este sim, tinha o sucesso do projeto com seu objetivo maior.

    Parabéns pelo ótimo texto.

    /Giovani

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